quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A agricultura familiar pode auxiliar no desenvolvimento do país, se a sociedade der mais atenção ao mercado interno

A invenção do rural
A agricultura familiar pode auxiliar no desenvolvimento do país, se a sociedade der mais atenção ao mercado interno
ENTREVISTA A JANICE KISS
FOTO KLEIDE TEIXEIRA

O socioeconomista Ignacy Sachs diz que tem um olhar severo sobre o Brasil. É uma rigidez, porém, que levanta propostas e aponta soluções para muitos conflitos. Foi para uma missão como essas que ele deixou por alguns dias, no mês passado, a direção da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, para lançar o livro Desenvolvimento Humano, Trabalho Decente e o Futuro dos Empreendedores de Pequeno Porte no Brasil, em São Paulo.

O estudo é fruto de uma parceira com o Sebrae — Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, e o PNUD — Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Nele, há um capítulo dedicado à importância da pequena propriedade como um novo ciclo econômico para Brasil. 'Não acredito em uma solução urbana', explica.

Há três décadas ele fala em desenvolvimento sustentável e aos 74 anos de idade, viu, conferiu e analisou os planos de vários países que se preocuparam em manter o homem no campo sem excluí-lo da sociedade. Engana-se quem deduz que sua ligação com o rural é resultado de algum vínculo com o meio. Ignacy Sachs é um cosmopolita. Nasceu na Polônia e veio para o Brasil fugindo do anti-semitismo. Se formou em economia no Rio de Janeiro, voltou e saiu da Polônia mais uma vez, fez doutorado na Índia, trabalha em Paris e alimenta uma esperança enorme sobre o futuro do Brasil.

GLOBO RURAL — Por que é preciso redescobrir ou inventar o Brasil rural?
Ignacy Sachs — Não deixa de ser um paradoxo que o Brasil rural represente ao mesmo tempo um extraordinário potencial de desenvolvimento e o maior repositório da miséria e da exclusão. O duplo desafio é aproveitar este potencial, resgatando ao mesmo tempo a dívida social. A consolidação e a modernização da agricultura familiar existente e sua ampliação através da reforma agrária, que tem ainda um longo caminho pela frente. Não creio em uma saída urbana ou em uma agricultura sem homens.
Globo Rural - De que maneira é possível inaugurar esse novo ciclo?
Sachs — Permitindo à agricultura pobre, em vias de ser eliminada, se manter e se desenvolver. Quando se tem a maior biodiversidade do mundo, ampla oferta de solos cultiváveis, grande variedade de climas, ecossistemas e o sol que não poderá ser privatizado, vale a pena pensar em um dos principais preceitos do desenvolvimento sustentável que é a substituição gradual dos recursos não renováveis pelos renováveis. O Brasil tem condições de inaugurar esse novo ciclo se apoiando no trinômio: biodiversidade, biomassa e biotecnologia.

Como garantir o acesso às novas tecnologias para os pequenos agricultores que vivem próximos da exclusão?
Sachs
— Através de um feixe de políticas públicas para que a agricultura familiar tenha acesso aos créditos, à tecnologia, à educação e aos mercados. Deveríamos pensar numa política que favorecesse os pequenos, através das compras públicas como a merenda escolar que fornece diariamente, em todo país, 37 milhões de refeições. Em Santa Catarina foi inaugurado um programa experimental de apoio à agricultura biológica, e em Palmeira, no Paraná, um convênio com a prefeitura assegura o fornecimento às escolas de legumes e hortaliças da agricultura orgânica familiar.

Afora planos como esses, como a agricultura familiar poderia se fortalecer?
Sachs
— Através do associativismo e do cooperativismo. Longe de se contrapor ao empreendedorismo individual, o associativismo é um empreendedorismo compartilhado.
Quais os outros campos que poderiam ser explorados?
Sachs
— Não acredito que o problema da agricultura brasileira esteja tão atrelado à exportação. Possuímos um enorme mercado interno que nem de longe atingiu a saturação dos produtos agrícolas. Dessa forma, o país poderia começar a substituir as importações. É um absurdo que compremos de fora o coco verde, o óleo de dendê ou a borracha natural. E dentro desse campo há um enorme mercado a ser conquistado pela agricultura familiar. Se ela avança, não restam dúvidas de que poderá gerar um multiplicador na economia com uma maior demanda para bens e serviços.

É possível integrar o pequeno produtor e o agronegócio?
Sachs
— Sim, desde que se leve adiante a tese do tratamento desigual para os desiguais, ou seja, a necessidade de criar regras para o pequeno não ficar exposto a um processo de darwinismo social do mercado.

Os pequenos produtores, porém, não têm acesso ao crédito fácil. Como poderiam pensar em ampliar suas atividades?
Sachs
— Através de variadas cooperativas: de poupança, de crédito, de produção, de vendas. Por exemplo, sou um fã do consórcio que no Brasil é usado apenas para comprar eletrodomésticos, viajar ao exterior ou fazer uma cirurgia plástica. Na realidade, o consórcio nada mais é que uma associação de crédito rotativo que tem um longo passado no Japão, Indonésia e mais recentemente na África..

Apesar de suas críticas, o senhor parece ser um otimista.
Sachs
— Meu olhar sobre o Brasil é severo, porque considero o país como um lugar de enorme potencialidades que não são aproveitadas. Daqui a alguns anos a história vai julgar não só a trajetória pela qual esse país atravessou, mas as razões de seu atraso no aproveitamento das suas oportunidades.

O que é a multifuncionalidade da agricultura camponesa?
Além de produzir alimentos e outros produtos da terra e da pecuária, os camponeses atuam como guardiões da paisagem. Quando não são premiados por condições de vida insustentáveis, que os forçam ao uso predatório dos recursos naturais, têm em geral uma sensibilidade ecológica maior que a dos grandes empresários agrícolas. Historicamente, a economia camponesa se perpetuou porque sabia levar em conta o longo prazo, plantando árvores para as gerações futuras e fazendo bom uso da natureza. A racionalidade ecológica moderna nada mais é, afinal de contas, que a racionalidade camponesa alçada a outro nível da espiral dos conhecimentos. Os serviços ambientais prestados pela agricultura familiar respeitosa dos preceitos de manejo ecologicamente sustentável dos solos e das florestas representam fator importante da atratividade turística das regiões rurais, fontes de emprego adicionais para a população local.

O Brasil é mais rural do que imagina?
SACHS
- O termo urbanização deveria se restringir a situações onde as pessoas têm um teto razoável para morar, uma inserção produtiva e condições do exercício de cidadania. O processo de urbanização no país chegou cedo demais. Os que foram expulsos do campo estão longe de ser urbanizados e precisamos abandonar a idéia de que alguns vivem no mundo rural e outros no mundo urbano. Entre os dois existe uma grande fração da população que está no mundo pré-urbano. As favelas e as periferias das cidades são uma espécie de purgatório e as pessoas que lá moram esperam para ser urbanizadas. Dizer que eles foram urbanizados é uma ilusão estatística que foi potencializada por critérios absurdos da definição do que são urbano e rural.

O senhor tinha alguma expectativa com a Rio+10, realizada em Johannesburgo, na África? SACHS -- Não me decepcionei porque não me iludi. Sinto, apenas, pela oportunidade perdida de se definir uma estratégia de transição ao desenvolvimento sustentável que deve ser diferenciada para o norte e para o sul. O norte tem que mudar seu padrão de consumo. O sul precisa valorizar suas próprias potencialidades, seus recursos e se dar conta de que imitar o padrão do norte leva a um apartheid social.

Acesso em: 11 dez. 2008.

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