Biocombustíveis e alimentos: Concorrência ou complementaridade?, por Ignacy Sachs
É falsa a dicotomia absoluta entre plantio de cana para a produção de etanol e a produção de alimentos. Danosa é a indexação da produção de cereais, óleos e açúcares ao preço do petróleo. A análise é de Ignacy Sachs.
Ignacy Sachs*
Equivoquei-me ao pensar que Cuba, país canavieiro por excelência, viraria um aliado do Brasil na cruzada pela promoção dos biocombustíveis como substitutos da energia fóssil, produzidos por agricultores familiares, de maneira a enfrentar simultaneamente os dois maiores desafios do século : as mudanças climáticas e o déficit agudo de oportunidades de trabalho decente.
O ataque mais violento contra os biocombustíveis foi desfechado por Fidel Castro, que viu neles uma ameaça terrível contra a segurança alimentar. Já antes dele o ambientalista norte-americano Lester Brown falou do embate dramático entre 800 milhões dos donos dos automóveis e dois milhões de estômagos vazios, como se os pobres pelo mundo afora estivessem passando fome por falta de alimentos e não por falta de poder aquisitivo para comprá-los.
Se uma ameaça contra a segurança alimentar existe, ela se deve ao atrelamento de preços de milho, óleo de dendê, açúcar ao preço do petróleo. Bastou o presidente Bush anunciar um programa ambicioso de produção de etanol de milho para provocar uma alta dos preços das tortillas, alimento de base dos mexicanos. Isto sem falar que pouco sentido faz do ponto de vista da luta contra as mudanças climáticas um programa como este, já que a eficiência energética do etanol de milho é muito baixa.
No entanto, há fortes razões para pensar que a competição pelos solos agriculturáveis entre biocombustíveis e alimentos pode ser administrada através de um conjunto de medidas:
- Priorização de áreas degradadas e desmatadas para o plantio de culturas energéticas; o plano indiano de agroenergia privilegia a reabilitação de solos degradados pelo brasileiríssimo pinhão manso que teria três virtudes: se dá bem em solos pobres, produz frutos durante quarenta anos, não é comestível.
- Aproveitamento dos resíduos florestais, das partes não comestíveis das plantas alimentares, de gramíneas e de árvores para a produção do etanol celulósico, que começará a entrar no mercado dentro de poucos anos.
- Ênfase sobre sistemas integrados de produção de alimentos e energia, entre os quais se destaca a integração da pecuária com a produção da cana-de-açúcar e de óleos vegetais.
Por isso, a minha preferência vai a um outro projeto experimental que a Petrobrás acaba de lançar no Rio Grande do Sul em colaboração com uma cooperativa de pequenos agricultores familiares. O projeto prevê a instalação de várias micro-destilarias de cana-de-açúcar. Os cooperados plantarão em média apenas dois hectares de cana, cujas pontas serão utilizadas para alimentar o gado leiteiro. É claro que as unidades familiares não se limitarão à produção da cana. É difícil superestimar a importância deste projeto experimental desenhado de maneira a deixar na mão de pequenos agricultores toda a produção do etanol, reabrindo na ocasião, o debate sobre o papel a ser reservado às micro-destilarias e à produção local em pequena escala.
Poucos se lembram que este tema foi levantado no fim dos anos setenta pelos responsáveis de então pelo Pró-Alcool. Um projeto de lei de apoio a micro e mini-destilarias chegou a ser apresentado ao Congresso, mas foi arquivado.
Já que estamos falando de modelos alternativos da produção de etanol, convém lembrar que em Alagoas funciona a única usina de etanol pertencente a uma cooperativa de pequenos e médios agricultores, Pindorama. Por que não pensar em outras Pindoramas em áreas que devem acolher assentamentos de reforma agrária?
* Ignacy Sachs é diretor do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo na École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, na França
Nenhum comentário:
Postar um comentário