quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

'A CRISE FAZ BEM AO PLANETA'

Entrevista com Ignacy Sachs para o Jornal Estado de Minas

Ignacy Sachs é o palestrante convidado do evento preparatório para o Diálogos da Terra. Esta entrevista foi concedida por ele no dia 09 de novembro.
"A ênfase dada à globalização vai sofrer um retrocesso" Zulmira Furbino.

'A CRISE FAZ BEM AO PLANETA'

Com uma visão positiva do impacto da atual crise econômica global no desenvolvimento sustentável do planeta, o “ecossocioeconomista” e conselheiro das Nações Unidas, Ignacy Sachs, que ajudou a cunhar o conceito de desenvolvimento sustentável no mundo, defende uma mudança radical no estilo de vida do mundo no século 21. Para ele, é preciso reduzir o perfil do consumo de energia, aumentar a eficiência energética e substituir as energias fósseis pelas renováveis. Sachs acredita que a crise iniciada nos Estados Unidos, que acabou por jogar na recessão as economias mais maduras do mundo, marca o fim do mito neoliberal de que os mercados são capazes de se auto-regulamentar. Aposta, ainda, no retrocesso da globalização diante da nova realidade econômica mundial. Ignacy Sachs estará em Belo Horizonte, quinta-feira, para falar da transição no uso das energias fósseis e as saídas da era do petróleo, no encontro preparatório para o evento Diálogos da Terra, que será realizado de 26 a 28 de novembro no Minascentro.

Como a crise financeira global influencia o processo de sustentabilidade do planeta?
A crise tem aspecto altamente positivo. Ela marca o fim do mito neoliberal de que os mercados são capazes de se auto-regular. Portanto, remete mais uma vez a uma questão fundamental: qual Estado, para qual desenvolvimento, que papel e que funções tem esse Estado dentro de uma economia mista onde o mercado tem papel importante, mas deve ser regulado? O segundo aspecto é que a ênfase excessiva dada à globalização vai sofrer um retrocesso.

O senhor afirma que o mundo está em transição. Em que consiste isso?
Se você pegar a longa história da co-evolução da espécie humana com a biosfera, vai ver que até hoje houve duas grandes transições. A primeira, que começou há 12 mil anos, foi a domesticação de plantas e animais que levou à urbanização e a uma série de avanços na civilização. A segunda, no fim do século 17, começou com a utilização de energias fósseis como o carvão e, no século 19, com o petróleo e o gás. Tudo indica que estamos no início de uma terceira grande transição, que é a saída da era do petróleo. É urgente que reduzamos as emissões dos gases que provocam o aquecimento global. Além disso, de acordo com o que dizem a maioria dos geólogos, estamos próximos do pico do petróleo, do momento em que a produção estará no seu máximo. As novas descobertas são inferiores ao consumo da humanidade.

Em quanto tempo isso vai acontecer?
A tendência geral não vai contra a tese de que estamos próximos do pico do petróleo. De qualquer maneira, isso não acontecerá da noite para o dia. O processo vai levar décadas e poderá se prorrogar até o próximo século. Mas se nos voltamos à longa perspectiva da co-evolução da espécie humana com a biosfera, vamos verificar que o período de uso intensivo das energias fósseis vai parecer breve interlúdio de 4 séculos.

Como fica a descoberta das reservas do pré-sal no Brasil nesse contexto?
O pré-sal é um grande bilhete que o Brasil ganhou na loteria. Mais dia, menos dia, esses recursos terão de ser aproveitados. Mas mesmo o pré-sal é um recurso que vai se esgotar. Essa grande descoberta não deve nos distrair da construção de uma civilização duradoura, baseada no uso múltiplo da biomassa. A questão é até onde podemos caminhar na direção que apontei. E isso depende da nossa capacidade e de pesquisa. Se os biocombustíveis levam ao latifúndio e à monocultura, eles não vão resolver o desafio. O importante não é dizer que se pode produzir mais biocombustível, mas mostrar que não há contradição entre segurança alimentar e energia. É preciso mostrar como será a solução e também os impactos sociais das soluções que serão apontadas. Existem margens de liberdade para a maneira de organizar a produção. Esse é o verdadeiro desafio para a política brasileira da próxima década.

Quais as saídas para a situação atual?
A primeira e a mais importante é a redução do perfil da demanda pela energia. Por causa da energia barata, desenvolvemos um estilo de vida extremamente dilapidador dessa energia. Temos de repensar os nossos estilos de vida e de consumo. Depois, há um enorme espaço para aumentar a eficiência e tirar mais proveito da energia consumida. Em terceiro lugar, aparece a substituição das energias fósseis pelo conjunto da energias renováveis: éolica, solar e biocombustíveis, com o etanol como aditivo e substituto da gasolina e o biodiesel como aditivo e substituto do diesel, além da produção de energia elétrica a partir da biomassa. Também podemos incluir o carvão vegetal verde, produzido a partir de resíduos vegetais e de árvores plantadas. Temos, portanto, enorme elenco das substituições diretas das energias fósseis pelas renováveis.

Quando esse processo será concluído?
São processos que nunca acabam. É extremamente importante introduzir um elemento a mais no debate: a substituição indireta das energias fósseis, por meio de um uso maior de produtos derivados da biomassa. Na realidade, biomassa é alimento, é ração animal, é adubo verde, é bioenergia, fibra, plástico e material de construção. Há um leque cada vez maior de produtos derivados da biomassa. As usinas de plástico verde são apenas o começo de toda uma gama de possibilidades. Temos ainda os fármacos e os cosméticos. É possível imaginar uma civilização moderna baseada no uso múltiplo da biomassa explorando o trinômio biodiversidade-biomassa-bioteconologia aplicado nas duas pontas do processo. Essa é uma possibilidade particularmente interessante para países tropicais, onde o Sol é e será nosso. O Brasil é um sério candidato a liderar esse processo de construção das biocivilizações modernas do futuro. É importante nos darmos conta do fato de que no século 21 enfrentaremos dois desafios: as mudanças climáticas e um déficit crônico e sério de oportunidades de trabalho. Portanto, nossa ambição deveria enfrentar esses dois desafios simultaneamente. Isso nos leva a enfatizar o potencial da biocivilização, condicionando seu desenvolvimento a estratégias que privilegiem o agricultor familiar para gerar o maior número de oportunidades decentes possível.


Seria uma volta ao campo, depois da industrialização?
Essa volta é muito difícil. A Organização das Nações Unidas publicou um relatório que diz que metade da humanidade vive nas cidades. Isso significa que a outra metade vive no campo. Não estou pregando a saída massiva de pessoas das cidades para o campo, mas uma política que permita que um número maior de pessoas encontre condições de vida dignas e amenas fora dos grandes centros. A visão de que a urbanização é sinônimo de progresso tem de ser revista seriamente. Refugiados do campo, apinhados em favelas, não constituem a solução dos problemas do desenvolvimento.

Veículo:
ESTADO DE MINAS
Seção: ECONOMIA
Cidade: BELO HORIZONTE
Estado:MG
Data: 09/11/2008
Acesso em: 11 dez. 2008.

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