Ignacy Sachs é o palestrante convidado do evento preparatório para o Diálogos da Terra. Esta entrevista foi concedida por ele no dia 09 de novembro.
'A CRISE FAZ BEM AO PLANETA'
Com uma visão positiva do impacto da atual crise econômica global no desenvolvimento sustentável do planeta, o “ecossocioeconomista” e conselheiro das Nações Unidas, Ignacy Sachs, que ajudou a cunhar o conceito de desenvolvimento sustentável no mundo, defende uma mudança radical no estilo de vida do mundo no século 21. Para ele, é preciso reduzir o perfil do consumo de energia, aumentar a eficiência energética e substituir as energias fósseis pelas renováveis. Sachs acredita que a crise iniciada nos Estados Unidos, que acabou por jogar na recessão as economias mais maduras do mundo, marca o fim do mito neoliberal de que os mercados são capazes de se auto-regulamentar. Aposta, ainda, no retrocesso da globalização diante da nova realidade econômica mundial. Ignacy Sachs estará em Belo Horizonte, quinta-feira, para falar da transição no uso das energias fósseis e as saídas da era do petróleo, no encontro preparatório para o evento Diálogos da Terra, que será realizado de 26 a 28 de novembro no Minascentro.
Como a crise financeira global influencia o processo de sustentabilidade do planeta?
A crise tem aspecto altamente positivo. Ela marca o fim do mito neoliberal de que os mercados são capazes de se auto-regular. Portanto, remete mais uma vez a uma questão fundamental: qual Estado, para qual desenvolvimento, que papel e que funções tem esse Estado dentro de uma economia mista onde o mercado tem papel importante, mas deve ser regulado? O segundo aspecto é que a ênfase excessiva dada à globalização vai sofrer um retrocesso.
O senhor afirma que o mundo está em transição. Em que consiste isso?
Se você pegar a longa história da co-evolução da espécie humana com a biosfera, vai ver que até hoje houve duas grandes transições. A primeira, que começou há 12 mil anos, foi a domesticação de plantas e animais que levou à urbanização e a uma série de avanços na civilização. A segunda, no fim do século 17, começou com a utilização de energias fósseis como o carvão e, no século 19, com o petróleo e o gás. Tudo indica que estamos no início de uma terceira grande transição, que é a saída da era do petróleo. É urgente que reduzamos as emissões dos gases que provocam o aquecimento global. Além disso, de acordo com o que dizem a maioria dos geólogos, estamos próximos do pico do petróleo, do momento em que a produção estará no seu máximo. As novas descobertas são inferiores ao consumo da humanidade.
Em quanto tempo isso vai acontecer?
A tendência geral não vai contra a tese de que estamos próximos do pico do petróleo. De qualquer maneira, isso não acontecerá da noite para o dia. O processo vai levar décadas e poderá se prorrogar até o próximo século. Mas se nos voltamos à longa perspectiva da co-evolução da espécie humana com a biosfera, vamos verificar que o período de uso intensivo das energias fósseis vai parecer breve interlúdio de 4 séculos.
Como fica a descoberta das reservas do pré-sal no Brasil nesse contexto?
O pré-sal é um grande bilhete que o Brasil ganhou na loteria. Mais dia, menos dia, esses recursos terão de ser aproveitados. Mas mesmo o pré-sal é um recurso que vai se esgotar. Essa grande descoberta não deve nos distrair da construção de uma civilização duradoura, baseada no uso múltiplo da biomassa. A questão é até onde podemos caminhar na direção que apontei. E isso depende da nossa capacidade e de pesquisa. Se os biocombustíveis levam ao latifúndio e à monocultura, eles não vão resolver o desafio. O importante não é dizer que se pode produzir mais biocombustível, mas mostrar que não há contradição entre segurança alimentar e energia. É preciso mostrar como será a solução e também os impactos sociais das soluções que serão apontadas. Existem margens de liberdade para a maneira de organizar a produção. Esse é o verdadeiro desafio para a política brasileira da próxima década.
Quais as saídas para a situação atual?
A primeira e a mais importante é a redução do perfil da demanda pela energia. Por causa da energia barata, desenvolvemos um estilo de vida extremamente dilapidador dessa energia. Temos de repensar os nossos estilos de vida e de consumo. Depois, há um enorme espaço para aumentar a eficiência e tirar mais proveito da energia consumida. Em terceiro lugar, aparece a substituição das energias fósseis pelo conjunto da energias renováveis: éolica, solar e biocombustíveis, com o etanol como aditivo e substituto da gasolina e o biodiesel como aditivo e substituto do diesel, além da produção de energia elétrica a partir da biomassa. Também podemos incluir o carvão vegetal verde, produzido a partir de resíduos vegetais e de árvores plantadas. Temos, portanto, enorme elenco das substituições diretas das energias fósseis pelas renováveis.
Quando esse processo será concluído?
São processos que nunca acabam. É extremamente importante introduzir um elemento a mais no debate: a substituição indireta das energias fósseis, por meio de um uso maior de produtos derivados da biomassa. Na realidade, biomassa é alimento, é ração animal, é adubo verde, é bioenergia, fibra, plástico e material de construção. Há um leque cada vez maior de produtos derivados da biomassa. As usinas de plástico verde são apenas o começo de toda uma gama de possibilidades. Temos ainda os fármacos e os cosméticos. É possível imaginar uma civilização moderna baseada no uso múltiplo da biomassa explorando o trinômio biodiversidade-biomassa-bioteconologia aplicado nas duas pontas do processo. Essa é uma possibilidade particularmente interessante para países tropicais, onde o Sol é e será nosso. O Brasil é um sério candidato a liderar esse processo de construção das biocivilizações modernas do futuro. É importante nos darmos conta do fato de que no século 21 enfrentaremos dois desafios: as mudanças climáticas e um déficit crônico e sério de oportunidades de trabalho. Portanto, nossa ambição deveria enfrentar esses dois desafios simultaneamente. Isso nos leva a enfatizar o potencial da biocivilização, condicionando seu desenvolvimento a estratégias que privilegiem o agricultor familiar para gerar o maior número de oportunidades decentes possível.
Seria uma volta ao campo, depois da industrialização?
Essa volta é muito difícil. A Organização das Nações Unidas publicou um relatório que diz que metade da humanidade vive nas cidades. Isso significa que a outra metade vive no campo. Não estou pregando a saída massiva de pessoas das cidades para o campo, mas uma política que permita que um número maior de pessoas encontre condições de vida dignas e amenas fora dos grandes centros. A visão de que a urbanização é sinônimo de progresso tem de ser revista seriamente. Refugiados do campo, apinhados em favelas, não constituem a solução dos problemas do desenvolvimento.
Veículo: ESTADO DE MINAS
Seção: ECONOMIA
Cidade: BELO HORIZONTE
Estado:MG
Data: 09/11/2008
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